A questão indígena voltou a ser destaque nos noticiários radiofônicos, televisivos e na mídia escrita no Rio Grande do Sul, depois que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, editou a Portaria 2.222 no dia 21 de setembro de 2012, que declara a terra indígena Mato Preto como sendo de ocupação tradicional do povo Guarani.
Desde 2007, a referida terra indígena vinha sendo objeto de estudos antropológicos, históricos, fundiários e ambientais, seguindo rigorosamente as determinações legais impostas pela Constituição Federal (Artigo 231), pelo Decreto 1775/1996 e pela Portaria 14/1996. Tais estudos se deram a partir de grupo técnico criado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que concluiu que a terra deveria ser demarcada com 4. 230 hectares.
Após a publicação do relatório da Funai, abriu-se prazo para o contraditório, previsto no Decreto 1.775/96, momento em que todos aqueles que se sentissem afetados ou discordassem das conclusões do GT poderiam se manifestar e levantar todos os questionamentos que considerassem pertinentes. As manifestações contrárias ao conteúdo do relatório foram submetidas à Funai e ao departamento jurídico do Ministério da Justiça.
Dada a lentidão do procedimento de demarcação da terra indígena Mato Preto, que já se arrastava por anos, e a extrema vulnerabilidade em que se encontra a comunidade indígena, o Ministério Público Federal exigiu, através do Judiciário, que o Poder Executivo se pronunciasse em relação a este procedimento demarcatório. O Ministério da Justiça viu-se então obrigado a reconhecer que de fato a área em questão é efetivamente de ocupação tradicional indígena e que os estudos realizados pela Funai foram coerentes e seguiram os trâmites estabelecidos pela legislação correspondente.
Durante o processo de contraditório, os ocupantes não indígenas alegaram que os indígenas não estavam vivendo sobre a terra reivindicada, ou seja, não a ocupavam, não usufruíam da área. O Ministério da Justiça esclareceu que isso se deu por conta da pressão e das perseguições realizadas contra os Guarani, sendo estes obrigados a abandonar as terras em decorrência de um violento e arbitrário processo de colonização e de ocupação da região.
Recuperando esses aspectos concernentes ao processo de demarcação da terra indígena Mato Preto, o Cimi Regional Sul quer demonstrar a inconsistência e o teor ideológico de certos posicionamentos e manifestações públicas de autoridades, de políticos e procuradores contrários tanto às conclusões dos estudos de identificação e delimitação da referida terra indígena, quanto à publicação da Portaria 2.222/2012 que declara a área como sendo efetivamente indígena. Os argumentos contrários à demarcação da terra indígena tem sido veiculados na mídia impressa e eletrônica, por alguns políticos, e com particular veemência por um procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Visto que todas as alegações contrárias à demarcação foram apresentadas a seu tempo e declaradas sem efeito jurídico no decorrer do procedimento administrativo realizado pelo Ministério da Justiça e sob acompanhamento do Ministério Público Federal, deduz-se que tais manifestações possuem um evidente viés político e tem servido para insuflar a população regional contra os Guarani e contra outros povos indígenas. Vale ressaltar que alguns argumentos veiculados recentemente possuem um forte apelo racista, o que agride preceitos constitucionais e gera um clima de insegurança e de violência contra aquelas pequenas comunidade Guarani, que vivem há décadas à margem de rodovias, submetidas a uma condição de absoluta vulnerabilidade.
A campanha contra os direitos indígenas no Rio Grande do Sul é cruel. O mesmo se pode dizer com relação às comunidades Quilombolas, igualmente atacadas por aqueles que defendem exclusivamente setores econômicos que visam à exploração da terra. Indígenas e quilombolas são tratados como categorias residuais, ou como pessoas descartáveis, que não se enquadrariam no atual modelo de “desenvolvimento”. Visto que a lógica que move esse modelo é a da produção em larga escala e a do consumismo, estas pessoas e seus estilos de vida não parecem adequados, por isso eles são vistos como entraves, como obstáculos que deveriam ser removidos do suposto caminho linear rumo ao desenvolvimento. Obviamente que os Guarani não são os “bons consumidores” desejados no sistema capitalista, não são ávidos, não levam uma vida a crédito, não são capturados pelos apelos de consumo imediato de tudo o que o mercado pode oferecer. Eles também não são produtores ajustados ao agronegócio, não se organizam para explorar a terra até seu último recurso, não visam acumular e ampliar a margem de lucros, não são empreendedores em um mundo no qual poucos tem lugar e pouquíssimos se beneficiam.
Dentro dessa lógica, aos Guarani e a outros povos indígenas restam as políticas assistenciais, as bolsas e as ações paliativas, as mesmas que, aliás, são reservadas aos pobres e excluídos desse sistema tão seletivo e cruel. Exigir os direitos sobre as terras tradicionais soa absurdo nas coordenadas desse modelo unilateral. Contudo, é preciso lembrar que, conforme a Constituição Federal, as estruturas do Estado devem estar a serviço da população como um todo e não apenas de setores que historicamente gozaram de privilégios e agora se debatem para mantê-los.
O Projeto de Emenda à Constituição Federal de número 215, uma bandeira dos parlamentares ruralistas e dos governos aliciados por este segmento da política nacional, propõe que o Congresso Nacional passe a decidir sobre a demarcação de terras indígenas ou quilombolas, retirando esta atribuição do Poder Executivo. Tal proposta, considerada inconstitucional por vários juristas e por membros do Ministério Público Federal, está imbuída do princípio de que indígenas e quilombolas são obstáculos, emperram o desenvolvimento locar, regional, nacional, com suas demandas, suas lutas por justiça, por terra, por respeito.
Movida pela mesma lógica – a da improdutividade da vida indígena e quilombola – a Assembleia Legislativa criou uma Comissão Especial para discutir a situação das áreas destas comunidades no Rio Grande do Sul. O Cimi Regional Sul faz essa referência porque a tal Comissão organizou um relatório que propõe que a terras tradicionais indígenas e quilombolas sejam substituídas por terras a serem adquiridas pelo Estado, liberando-se assim áreas vistas como estratégicas, que seriam “desperdiçadas” se estivessem nas mãos destes povos. O referido relatório também afirma que os principais problemas indígenas e quilombolas têm origem na falta de assistência, que é responsabilidade da Funai e do Incra, deslocando o foco do problema principal que é efetivamente a negação do direito às terras tradicionais.
Assim, no tocante aos procedimentos de demarcação de terras, o relatório propõe que o governo se submeta as 19 condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do processo que decidiu pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e, ao mesmo tempo, sugere que o governo do Estado e os parlamentares se empenhem no sentido de aprovar da PEC 215. A Comissão não leva em consideração que, em dois julgamentos recentes, ministros do STF já se posicionaram decidindo que as condicionantes valem apenas para o caso específico da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Os encaminhamentos propostos pela Comissão Especial da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul não possuem força decisória, no entanto fomentam a oposição aos direitos indígenas e quilombolas. Ao que parece a referida Comissão quer, em sintonia e em articulação com os discursos de políticos, autoridades e analistas econômicos dos meios de comunicação vinculados ao agronegócio e a retórica desenvolvimentista, exercer pressão política. Pretende com isso, desencadear uma intensa campanha tendo em vista limitar o alcance dos direitos constitucionais destes povos e comunidades tradicionais e consequentemente impor uma nova ordem jurídica no que tange a posse, ocupação e usufruto das terras reivindicadas por indígenas e quilombolas.
Os povos indígenas, por sua vez, têm se mantido firmes na reivindicação do cumprimento dos preceitos constitucionais. Um dos mais importantes preceitos determina que as terras deveriam ter sido demarcadas em até cinco anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT Art. 67). Por que políticos, autoridades e alguns procuradores não se ocupam em assegurar a consecução desse direito, ao invés de buscar formas de negligenciá-lo?
Chapecó, 16 de outubro de 2012.
Conselho Indigenista Missionário Regional Sul
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